CABEÇALHO-Pintura oferecida à Escola Secundária Augusto Cabrita, pelo pintor do Barreiro Kira, em homenagem ao seu amigo Augusto Cabrita.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

DIA DA BIBLIOTECA ESCOLAR

26 de outubro

      BIBLIOTECA VERDE

– Papai, me compra a Biblioteca Internacional de Obras Célebres. 

São só 24 volumes encadernados em percalina verde.

– Meu filho, é livro demais para uma criança!...

– Compra assim mesmo, pai, eu cresço logo.

– Quando crescer, eu compro. Agora não.

– Papai, me compra agora. É em percalina verde, 

só 24 volumes. Compra, compra, compra!...

– Fica quieto, menino, eu vou comprar. 

– Rio de Janeiro? Aqui é o Coronel.

Me mande urgente sua Biblioteca

bem acondicionada, não quero defeito.

Se vier com um arranhão, recuso. Já sabe:

Quero a devolução de meu dinheiro.

– Está bem, Coronel, ordens são ordens.  

Segue a Biblioteca pelo trem-de-ferro, 

fino caixote de alumínio e pinho.

Termina o ramal, o burro de carga

vai levando tamanho universo. 

Chega cheirando a papel novo, mata

de pinheiros toda verde. 

Sou o mais rico menino destas redondezas.

(Orgulho, não; inveja de mim mesmo)

Ninguém mais aqui possui a coleção das Obras Célebres.

Tenho de ler tudo. Antes de ler,

que bom passar a mão no som da percalina, 

esse cristal de fluida transparência: verde, verde...

Amanhã começo a ler. Agora não.

Agora quero ver figuras. Todas.

Templo de Tebas, Osíris, Medusa, Apolo nu, Vénus nua...

Nossa Senhora, tem disso nos livros?!... 

Depressa, as letras. Careço ler tudo.

A mãe se queixa: Não dorme este menino.

O irmão reclama: Apaga a luz, cretino! Espermacete cai na cama, queima a perna, o sono.

Olha que eu tomo e rasgo essa Biblioteca

antes que pegue fogo na casa.

Vai dormir, menino, antes que eu perca a paciência e te dê uma sova.

Dorme, filhinho meu, tão doido, tão fraquinho.

Mas leio, leio... Em filosofias tropeço e caio,

cavalgo de novo meu verde livro,

em cavalarias me perco, medievo;

em contos, poemas me vejo viver.

Como te devoro, verde pastagem!...

Ou antes carruagem de fugir de mim

e me trazer de volta à casa

a qualquer hora num fechar de páginas? 

Tudo que sei é ela que me ensina.

O que saberei, o que não saberei nunca,

está na Biblioteca em verde murmúrio

de flauta-percalina eternamente.


                               Carlos Drummond de Andrade

Sem comentários:

Enviar um comentário