A Velha à Soalheira ou a Arte de Contar e Ensinar
Na Soalheira da Cal, rente à parede a velha fazia magia com as palavras, os
tons e os gestos. Primeiro um gaiato, depois outro, e outro, e ainda outro, e a
soalheira transformava-se num palco.
A velha à soalheira faz
parte do meu imaginário, do meu mundo e da minha matriz iniciática e
educacional. Nasci, cresci, abalei e regresso sempre a um pequeno povo (a minha
aldeia onde vivo sempre na memória e na pele) de contadores, oradores
e educadores, gente de muitos recursos de oratória, de
imaginação e de mangações.
A velha à soalheira, sentada na cadeira de buínho, rodeada de gaiatagem de
bico aberto àvidos das suas lembranças, errâncias e andanças marcou-me para
sempre. Quando a velha toma, para nós gaiatagem, a palavra, torna-a
mágica, embrulha-a ora em casquinha fina, ora em linho ou saragoça, modela-a
com a voz ora musicada, ora esganiçada, ora ritmada e leva-nos a todos no
colo do avental pelo mundo da imaginação, do fantástico, do maravilhoso, da educação,
da sensibilidade e do conhecimento.
- São bruxas malfazejas que pela calada da noite fazem-nos mijar os lençóis
para sabermos que nos portámos mal nesse dia - função moral;
- São fadas boazinhas que nos vêm buscar, com ternura e de mansinho, os dentinhos
podres e trazer os sãos - Função psicoterapêutica;
- São lobisomens que pela noite de lua cheia com os seus uivos e bater de
cascos na calçada nos atemorizam - Função social e preventiva sobre
os perigos;
- São os medos que aparecem no poço da aldeia à meia-noite - Função
de Vigilância (não é hora para a gaiatagem andar na rua);
- São as feiticeiras que na passagem do ribeiro deslocam a passadeira de
pedra e espetam com o passante na água - Função de alerta para os
perigos e função de cuidado e preocupação;
- São as almas penadas que andam amaldiçoadas até alguém as ajudar a chegar
ao céu - Função de despertar o desejo de ajuda ao outro que sofre;
- São as mulheres caminheiras da noite pelas estradas escuras, envoltas em
vestes negras - Função de respeito pela vida do outro e também
de algum temor em relação ao desconhecido (quem vai,vai
e quem está, está!)
- São as canções de roda, de embalar, de trabalhar e de fazer sonhar
- Função simbólica de identidade e também de alegria, convivialidade
e aprendizagem,
- São os homens chifrudos com pés de bode que correspondem àquele de que
não se pode pronunciar o nome - Função maníqueista (o
bem e o mal).
É tudo isto que faz da velha à soalheira, aqui no branco do
sul, acolá no escuro do norte, uma contadora da memória coletiva, um livro
contado e aberto da identidade de um povo, uma transmissora de
ensinamentos, responsos, moralidades e terapias com uma função e prática
educativa que desperta na criança a curiosidade, a compreensão e a liberta dos
medos ou a confronta com os seus anseios.
Esta velha leva a gaiatagem ao engano, ao engano educativo, formativo
que provoca a avidez de saber e compreender. Ajuda a gaiatagem na viagem
iniciática para o amadurecimento. Ajuda pelo poder da palavra, da arte de
contar e encantar, a gaiatagem a crescer aprendendo a "ouver" e
alimentando a curiosidade para saber mais e mais.
A minha velha à soalheira corresponde à matriz da tradição oral em que
a palavra, o cenário, a sugestão, a sedução e o gesto
aparecem como "armas" com um poder comunicativo enorme da
mensagem e do conhecimento comunitário. É a memória e a identidade que viajam
até nós pela palavra!
É também nesta matriz que muitos contadores da palavra lida se inspiram.
A minha velha à soalheira foi a minha conselheira e educadora.
O papel da minha velha à soalheira é didático, iniciático, ético e
cognitivo.
Domingos Boieiro
Sem comentários:
Enviar um comentário